Local: Colar do Mérito da Corte de Contas Ministro José Maria Alkmim.

"Pressurosos atendemos à honrosa convocação de aqui comparecer para receber o Colar do Mérito da Corte de Contas Ministro José Maria Alkmim, sabendo, de antemão, o esforço que essa Casa empreende, as circunstâncias de luto que ora vivencia e as dificuldades de realizar essa solenidade, somente superadas, por certo, pela importância do inesquecível Patrono dessa medalha.

Mas, afinal, o que é uma festa senão a exata reprodução da existência ou coexistência humana? Uma reprodução, é certo, normalmente rica em cores, em luzes, em brilho, mas que não ofuscam os sentimentos que permeiam todo o tecido que a reveste. Como aqui, quando nós, os que ora recebem esse honroso Colar, trajamo-nos com fina estampa, com a seda do orgulho envaidecido, somos, entretanto, exatamente homenageados pelos que se vestem com o veludo triste e escuro, púrpuro da saudade de João Bosco Murta Lages.

Sim, esta é uma festa e por isso bem retrata a fragilidade humana, a incerteza do nosso tempo, a doce ilusão de chorar e rir, e até rir chorando ou chorar rindo, porque o conflito terá nascido “tão logo os homens se defrontaram com a tarefa de viverem juntos”... E se a civilização constitui o caminho necessário para o desenvolvimento da humanidade como um todo, estamos, então, irremediavelmente condenados a viver a ambivalência, a eterna luta entre as tendências de amor e morte.

Desse conflito, ecoa, assim, alto, a silenciosa ausência do Conselheiro João Bosco Murta Lages; sua biografia, garrafa de náufrago lançada em Mar de Espanha, muito navegou, sempre em águas claras, distribuindo mensagens várias, fundando faculdades, espalhando trabalhos, obras, serviços, títulos de cidadão; literato com firma reconhecida pela Academia Mineira de Letras, foi empossado Conselheiro em 1988, sendo Presidente desse afetuoso Tribunal de Contas de Minas Gerais no biênio 1997/98.

Nossos calorosos e afáveis anfitriões, embora estendendo, qual rubro tapete, todo tempo, seus melhores sorrisos para iluminar nossos caminhos nessas alterosas terras, não conseguem esconder, entretanto, a tristeza imensa, expressa na lágrima prismática que por vezes brota para se transformar na estrela da manhã que, breve e brilhante, irá lembrar que a vida apenas se transforma...

Deu nisso, o livro de Bosco: se não responde à curiosidade última, lega-nos, entretanto, o ensinamento final da transmutação. E, se desconhecidos caminhos ora pisa, o faz, apenas e tão somente para nos apontar os rumos novos que precisamos, doravante, trilhar.

A verdade é que a perplexidade da dolorosa partida de um Conselheiro há, sempre e sempre, de nos deixar como herança, além da saudade, as questões que afligem a Instituição que abrilhantou com seu profícuo trabalho. E, se precisaremos sempre nos perguntar quem somos, ou de onde viemos, devemos nos encher de coragem para em sua memória responder para onde vamos.

Sim, quem somos nós que nos irritamos, País adentro, com a insistência dos meninos de rua que teimam em exibir, afrontosos e ostensivos, suas doenças de narizes escorrendo, sua fome de esquálidos semblantes, sua desgraça em malabarismos desengraçados, dia todo, todo dia, sem fim de semana ou repouso, e aceitamos, impávidos, colossos de indignação, sem uma merecida explosão atlântica, as tenebrosas transações, de hora marcada, com turno e returno determinado em relógio de ponto, a ciranda da sem-cerimoniosa socapa, a licitação da ilicitude, o desserviço público, a busca do enriquecimento fácil e desonesto, o criminoso desleitamento de nossas famélicas crianças?

Quem serão os culpados por tamanho descalabro? Essa é uma questão seriamente importante, porque, lamentavelmente, por vezes, os Tribunais de Contas têm sido ocupantes únicos dos pelourinhos brasílicos, como se neles pudesse caber toda a responsabilidade do mal feito nacional.

O que podem os Tribunais de Contas, sozinhos nesse espinhento cipoal? A nossa história nos diz que até, de certo modo, temos podido muito, mas, claro, não temos podido tudo, mesmo em função da nossa origem... afinal, “de onde viemos?”

Comecemos lembrando que se hoje o coração é nobre, a origem, porém, é pobre. É verdade. Somos o fruto primeiro da Velha República, agasalhados, em manjedoura constitucional, somente após o nascimento. Crescemos nômades, vagando na geografia das nossas muitas cartas adjetivadas de magnas: adotados pelo capítulo do Ministério Público em 1934; albergados junto ao Poder Judiciário em 1937, deram-nos quartinho de auxiliar do Poder Legislativo na Constituição Liberal de 1946, onde continuamos a residir, embora em processo de acelerado e juvenil crescimento, que começado com atribuição de funções auditorias desde 1967, cresceu em 1988 e, até hoje expande-se em novas competências, atribuições e responsabilidades.

Instituído para “liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade”, o órgão constitucional, centraliza hoje, enquanto técnico, a totalidade do controle externo, acumulando as funções de parecerista, julgador, apreciador, auditor, informador, representador..., enfim, indo de fiscal a carrasco da ilegalidade.

O curioso é que essa notável e crescente expansão, se deu, por estranhas e desconhecidas razões, na contramão da história: em oposição à vida, quanto mais crescia mais apanhava. A orfandade do pai ilustre – fruto que foi da genialidade do grande RUI – transformou parte da opinião pública em ingrata madrasta que incapaz, até hoje, de reconhecer o cisne constitucional, trata-nos, desde muito, como um pequeno grande patinho feio.

Sem dúvida é necessário refletir e efetuar profunda e analítica auto-crítica. Antes, porém, de que nos tenham em cena única e exclusiva, sozinhos na ribalta política, é de ver-se, com iluminação própria, que, no Brasil, de ontem ou de hoje, a grande falha não está nessas Cortes - ou apenas nelas - meros e simples elos na cadeia do controle dos dinheiros públicos, que deve ser exercitado por todos.

Verdadeiramente, o grande problema da sociedade brasileira parece estar, não em um ou outro organismo individualizado, mas no acumpliciamento dos omissos, na organização do descontrole, na inadequação, no descompasso entre sua verdadeira constituição sócio-política e a jurídica.

Escrita esta última em mais de duas mil disposições, inspirada em cartas várias de experiências tantas, bebida nas fontes puras das águas da experiência do primeiro mundo, aparenta, entretanto, reportar-se a uma nova, paradisíaca e prometida terra, onde pululantes curandeiros são mesmo capazes de tudo que anunciam, cada nova eleição.

Aqueloutra gestada no baixíssimo nível cultural do nosso eleitorado, numa frágil e péssima estrutura pluripartidária, mero asilo de alucinados prestidigitadores da crendice popular. Em nosso País, o voto cidadão só é “paratodos” enquanto loteria popular de sorteios viciados, onde a probabilidade de elegermos “bons pais de família” é inversamente proporcional à quantidade e qualidade dos demais candidatos: dezenasde burros, centenas de cobras e lagartos, milhares de ratos, repugnante fauna que, tão logo empossada, ajuntar-se-á em congressual quadrilha do compadrio e do descontrole público.

Enfim, vivemos numa sociedade de muitos pobres homens pobres, garroteada por poucas e viciadas elites, enxame de moscas-varejeiras dependentes do erário; é esse o caldo cultural que deságua, amazônico, na total ausência de accountability, expressão que, aqui, de tão desconhecida, nem ao menos se conseguiu traduzir, como aliás, faz mais de quinze anos, adverte-nos a Professora Anna Maria Campos (“in Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português?”).

Aceito por todos que, na sociedade brasileira, entre as carências tantas, avulta a ausência de controle social, de nossa parte podemos - e até devemos - proceder a necessário “mea culpa”. Mas, não no recôndito das nossas igrejas, apenas nas pessoais secretas conversas com o deus nosso de cada dia, escondendo pensamentos palavras e obras.

Sim, comecemos discutindo a forma de escolha dos Ministros e Conselheiros, ainda com desnecessária e perniciosa influência política. Sem dúvida, dever-se-ia pensar em critérios outros, com ênfase no corpo de Auditores e de membros Ministério Público, além de participação de Conselhos Técnicos (OAB, CRC, CRE etc).

Mas, o que impede, na atual sistemática constitucional, de que assim procedam as casas legislativas, detentoras não apenas do controle mas da escolha da maioria das vagas dos Colegiados de Contas? É evidente que nada, pois a constituição só lhes impõe salutares limitações para a escolha do futuro cidadão conselheiro: idade, conhecimentos, idoneidade e reputação. Apenas isso.

Entretanto, é bom que se diga, não é a carência de bons e corretos homens, o nosso mal principal, muito menos o descompromisso. Antes, ao contrário, os Tribunais de Contas são compostos por pessoas íntegras, probas, honestas. Dedicados Ministros e Conselheiros que, na sua posse, não contrataram vassalagem ou prometeram lealdade a algum eventual e temporário posseiro do poder. Juraram todos – isso sim – bem e fielmente observar a Constituição e tudo fazerem, para honrar a nação.

E se falhas há, devem-se ao que tem faltado a tantas outras instituições: o arejamento da atenção, do olhar, da notícia, enfim, o desejo da sociedade - e da classe dirigente - por um mecanismo de controle efetivo. O controle para o controle. É o cobrar da cobrança.

Desta forma, se não devemos aceitar a crítica pueril, banal, desarrazoada, que visa tão somente ao descrédito da Instituição - pondo em risco o próprio sistema democrático, ao escancarar as portas do bem público à corrupção - não podemos, entretanto, temê-las, quando construtivas.

E assim, quando estiverem os Tribunais de Contas em cena, que venham as luzes. Mas que conquistem espaço, arrombem as portas, arrebatem a palavra, não para enquistar-se nas sombras do retrógrado, perfilhar-se com o passado, defender o indefensável, mas para argumentarem, mostrarem o que estão fazendo e, especialmente, de como não têm sido ouvidos, vistos, analisados, conhecidos, pois, como brilhantemente já apontou o Conselheiro Flávio Regis é, sem dúvida, adesinformação “o grande mal dos Tribunais de Contas”.

Impõe-se perorar perguntando, enfim: para onde vamos? Penso que nos cabe, com exclusividade, escolher entre dois evidentes caminhos: o primeiro, permanecer quedos, mudos e imutáveis, aceitando acarneirados a imolação que alguns nos querem impor, com a conseqüente privatização das auditorias públicas.

Isso, aliás, até teria uma vantagem: posaríamos como a única nação do mundo a adotar tal modelo; teríamos, mais uma vez, o Velho Mundo curvado aos nossos pés especialmente agora quando a própria União Européia, elaborando sua primeira constituição, consagra o modelo dos tribunais de contas. Seremos modernosos, seguindo o som dos imbecis: discutiremos, com sotaque abrasileirado, os casos das nossas Enron ou Parmalat, enquanto as colunas de fofoca especularão o que cochichavam um riquíssimo dono da empresa de auditoria e um poderoso ordenador de despesa, durante rendoso jogo de golfe, num lindo domingo de sol tropical!

Ou seguiremos pela alternativa outra. E, sem ter medo ou preguiça ante o ser ou não ser hamletiano, iremos além, decifrando o enigma que a esfinge da desconfiança nos antepõe: mais que apenas nos salvar, vamos afirmar nossa importância e altivez, mostrando e demonstrando à opinião publica que, se engatinhamos na infância, se porventura deambulamos em alguns passos de adultos, teremos, na maturidade, o auxílio luxuoso do cajado da nossa determinação e competência para ajudar a sociedade brasileira no combate desse seu flagelo maior que é a corrupção.

Para tanto impõe-se demonstrar que as Cortes de Contas não se resumem ao seu colegiado dirigente nem a “prédios fantásticos para abrigá-los”, um ser etéreo e estático à espera de que se lhe encaminhe números e contas para um julgamento formal e aligeirado, por homens sisudos, inatingíveis, cobertos de beca, em tudo e por tudo tentando emular os Tribunais de Justiça.

Antes, ao contrário, o que devemos é hastear em mastro alto a bandeira das nossas diferenças, até porque não usamos a camisa de força que aprisiona o Poder Judiciário impossibilitado de agir sem demanda. Nós podemos muito no plano jurídico, porque estamos instrumentalizados para julgar e agir, divulgar e comunicar, sustar e multar, tudo ao mesmo tempo.

Mas, especialmente, havendo carência no País de um “processo sistemático de auditoria”, como, aliás, já se apontou, é esse o vácuo que precisamos intensivamente ocupar - até por imposição e aparelhamento constitucional - com o desenvolvimento e aprimoramento de técnicas, para que possamos ser reconhecidos como um órgão dinâmico, atuante e, sobretudo, eficiente e eficaz, capaz de investigar, descobrir e punir até mesmo a sujeira em baixo do tapete.

O modelo brasileiro é bom: Um corpo técnico, concursado, estável, realiza as auditorias e inspeções, enquanto um colegiado vitalício, em apreciação plural, julga-as juntamente com as contas. É necessário apenas que funcione bem. E, para tanto, é certo, devemo-nos integrar como um sistema, conquistando, ademais o nosso almejado “Código de Controle” ora em ansiada gestação; e que nós, membros dos Tribunais de Contas aceitemos e assumamos nosso papel na certeza de que poder não é o que se expõe, mas, sim, o que se impõe!

Por fim, de minha parte, gostaria de antepor um único reparo à esse acolhedor Tribunal de Contas: se a outorga do Colar do Mérito da Corte de Contas José Maria Alkmim pressupõe a prestação de relevantes serviços ao País, no meu caso é evidente aaberratio ictus, pois que, disso, escolheram impenitente devedor. Esse único pecado é, entretanto, venial, porque quanto ao restante – demais agraciados, a festa, o calor humano, em todos os detalhes - foi tudo perfeito!

Saibam, assim, os carinhosos anfitriões que todos nós, extremamente honrados com oColar do Mérito da Corte de Contas Ministro José Maria Alkmim, queremos verbalizar que essa solenidade encheu-nos de envaidecido orgulho, só comparável, nesse tempos de olimpíadas, a emoção dos atletas que subiram ao pódio.

É, assim, aliás, como nos sentimos, maratonistas da vida, que por agradecidos e reconhecidos, prosseguiremos no infatigável caminho, buscando, agora, comendadores da nova inconfidência mineira, agir pelo engrandecimento dos Tribunais de Contas,redistribuindo, com o nosso trabalho, essas medalhas ora recebidas, colocando-as também nos peitos magros dos que dela necessitam: o povo oprimido nas ruas, esquinas, favelas, os sem escolas, sem merenda, sem saúde, sem assistência, sem eira nem beira, pois que, também eles, mesmo no anonimato absoluto, prestam, com seu exemplo de luta, relevantes serviços ao nosso País!

Muito obrigado. "