Professores e alunos comentam os efeitos de leis que tornam os conteúdos obrigatórios em sala de aula
Beatriz Quesada
É ensinado na escola que o brasileiro é resultado da mistura de três etnias: o branco europeu, o negro africano e o indígena nativo. A divisão do conteúdo ensinado, entretanto, não segue essa proporção. A história e complexidade dos povos indígenas e da população negra se encontram muitas vezes resumidas à descoberta do Brasil e ao período da escravidão.
“A nossa grande diversidade é apagada nos bancos escolares. Há uma tentativa de homogeneizar a cultura brasileira sob o olhar do colonizador europeu”, afirma o professor Redson Silva, docente há seis anos na rede pública.
Para mudar essa realidade, foi aprovada, em 2003, a Lei 10.639 que altera a Lei das Diretrizes Básicas da Educação (LDB) inserindo a história e cultura afro-brasileira e africana como conteúdos obrigatórios. Seis anos depois, em 2008, a Lei 11.645 inclui também a história e cultura dos povos indígenas brasileiros. Para entusiastas, as leis têm efeito multiplicador e favorecem mudanças na formação dos professores e nos materiais didáticos.
“Os cursos de ensino superior até muito recentemente sequer tinham disciplinas que tratavam desses temas. Não se discutia em sala de aula métodos, materiais ou objetivos de trabalhar a temática indígena e negra em sala de aula”, explica a professora e pesquisadora da questão indígena, Adriana Testa.
Quanto à aplicação da lei, as secretarias e escolas devem decidir como redesenhar seu currículo para encaixar os conteúdos. Por meio de uma demanda dos professores, a EMEI Carolina Maria de Jesus, em São Paulo, se destaca hoje no método de ensino da cultura dos povos indígenas e das raízes africanas.
“Por iniciativa dos educadores daqui, começamos com o resgate da história da nossa patrona, uma escritora negra”, explica a coordenadora Luciana Gatamorta. Atualmente a escola trabalha um semestre com matrizes africana e afro-brasileira, e no outro com estudos sobre os povos indígenas. Crianças de 4 a 6 anos são convidadas a estudar as particularidades de um povo, país ou personalidade dessa temática, e ao professor cabe fazer a relação com o universo do aluno.
“Com os povos indígenas, por exemplo, o grande objetivo é quebrar com os estereótipo de que existe um ‘índio’ só, que está lá longe no passado, vivendo na floresta”, afirma Luciana. “Se a dinâmica da aula é falar sobre o brincar do povo kalapalo, que vive no Alto Xingu, as crianças podem brincar como os kalapalo”.
O problema é que nem todas as escolas tratam a questão como um projeto coletivo da instituição. Segundo Ana Cristina Cruz, professora da Universidade Federal de São Carlos e pesquisadora da temática afro-brasileira, a aplicação desses conteúdos ainda está restrita a um grupo de educadores que se sentem atraídos por ela. “O maior desafio é que o tema seja incorporado em toda a estrutura da escola”, afirma.
Redson Silva se encaixa nesse perfil. Professor de história da rede pública paulistana há seis anos, ele revela não ter apoio para fomentar atividades que abordem os temas da lei, como debates sobre sobre a condição do negro no Brasil e a política de cotas.
“Fiz três tentativas de realizar um sarau de danças com temática africana e fui questionado por parte da gestão. Disseram que isso incomodaria os pais dos alunos, porque a dança seria uma invocação de divindades do candomblé”, relata o docente.
A dificuldade em lidar com o preconceito é compartilhada com o professor Altair Freitas, docente há 28 anos na rede particular. Para reverter a carga negativa que é colocada sobre as religiões africanas, o professor tenta atrair os alunos com os mitos que originaram as crenças. “Fazendo comparação com outras mitologias, como a grega e a romana, as crianças vão entendendo que não é algo errado. É uma cultura tão rica quanto qualquer outra”, diz.
Na EMEI onde Luciana é coordenadora, o preconceito das famílias é quebrado pelos próprios alunos, principalmente durante as exposições dos trabalhos finais. “Um aluninho de 5 anos estava com a sua mãe na exposição e disse a ela que não chamasse os povos indígenas de “índio”, porque é uma generalização de que eles não gostam. Esse tipo de intervenção aproxima a família do tema”, relata.
Além de aprender sobre outra cultura, os alunos também se sentem representados. Guilherme Souza tem 12 anos e é um dos únicos negros da sala no colégio particular onde estuda. “Minha professora de português contou histórias sobre mitologia africana. Pouca gente da sala é negra, então eles não gostaram tanto, mas para mim foi muito legal porque a gente se aprofundou em uma coisa nova”.
Alguns professores também abordam assuntos atuais como cotas, para que os alunos façam a relação entre o passado escravocrata do Brasil e o racismo que existe hoje no país. “A minha família paterna é toda negra. Ver isso na escola faz a gente repensar”, conta Yasmin Quariniri, que aprendeu sobre as ações afirmativas nas aulas de Redson.
Diante da omissão das escolas em tomar à frente das iniciativas, o professor de história, filosofia e sociologia Eduardo Fera ressalta o papel do docente como protagonista desse processo. “Cabe aos educadores abrir espaço para as demandas, vencer o preconceito institucionalizado e preencher lacunas na sua própria formação”, afirma.
Entre os materiais oferecidos pelo MEC, estão e-books da coleção História Geral da África e livros da coleção Educação para todos, com grande material sobre a temática indígena e negra, além de outros assuntos. Há, ainda, cursos de formação continuada para os professores da rede básica, voltados para igualdade racial e aprendizado da cultura indígena. Resta saber se as iniciativas serão suficientes enquanto os processos não são construídos de maneira coletiva com as escolas.