valdeciAo me deparar com o texto do Projeto de Lei Complementar 93/2023, que propõe um novo arcabouço fiscal para o governo federal (tema já tratado neste espaço no artigo “O novo arcabouço fiscal e o papel dos Tribunais de Contas” – 16.4.23), senti a mesma sensação de há exatos 23 anos, quando foi divulgada a proposta que se transformaria na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Como naquela época, pensei para mim mesmo: “que texto complexo e difícil de interpretar”. Hoje, não voltarei ao mérito do arcabouço, mas sim a algumas nuances do seu aspecto formal, de linguagem, que podem ser estendidas a todas as regras que compõem o atual Direito Financeiro brasileiro.

É certo que as normas que disciplinam esse ramo da ciência jurídica, por envolver a Atividade Financeira do Estado (Receitas, Despesas, Orçamento e seus Controles) como objeto de estudo, são mais técnicas, o que resulta em textos naturalmente mais complexos. No entanto, o que se observa é que está faltando uma atenção maior dos legisladores – desde os que elaboram as propostas (muitas vezes ainda nos órgãos da administração), até os responsáveis pela redação final das leis – em relação ao texto, à linguagem, à sua lógica e clareza.

Um primeiro desafio, portanto, está dentro do próprio texto das leis. Um exemplo dessa miopia legislativa é que, de forma semelhante ao que ocorreu na LRF, quase nenhum artigo do projeto do novo arcabouço pode ser compreendido, em seu sentido e alcance, sem a leitura simultânea de outro dispositivo da própria norma ou de outras leis. Nessa verdadeira caminhadura normativa, a leitura do referido dispositivo paralelo já remete a outro de outra lei, e assim por diante. A imagem que vem nessa hora é a das “Matrioskas”, famosas bonecas russas de madeira que, de tamanhos diferentes, são colocadas umas dentro das outras.

Não há dúvidas de que a hermenêutica jurídica (a interpretação das leis) exige a aplicação de métodos próprios, sendo um deles o “lógico-sistemático”. A rigor, o que existe é um sistema, um ordenamento jurídico. Nenhuma lei existe isolada, à medida que se insere numa estrutura maior, exigindo leitura harmonizada com outras normas, inclusive com as de maior hierarquia, para evitar as chamadas antinomias (contradições). No entanto, como diz o código do bom senso: tudo demais é veneno. Conclui-se, assim, que a interpretação sistemática, muitas vezes, não consegue dar conta dos verdadeiros labirintos e fios de novelos kafkianos formados por caputs, parágrafos, incisos, alíneas e itens dos múltiplos textos legais.

Além do desafio linguístico no corpo das próprias leis, chama a atenção o grande número de normas de Direito Financeiro aprovadas nos últimos anos. A Lei Maior instituiu uma verdadeira “Constituição Financeira”, ao prever capítulos específicos sobre o orçamento público, sua fiscalização e o papel dos órgãos de controle. Até aí, tudo dentro dos conformes e da nossa tradição latina de prolixidade. Não esqueçamos que nossa escola jurídica é filha de Roma (Corpus Juris Civilis), da França (Código Civil de Napoleão) e de Portugal, com suas múltiplas Ordenações (Afonsinas, Manuelinas, Filipinas). No entanto, de 1988 para cá, criou-se uma verdadeira inflação de normas, a começar pela grande quantidade de emendas constitucionais na área do Direito Financeiro. Só no tema do orçamento foram aprovadas quase vinte emendas, tratando, por exemplo, de orçamento impositivo, desvinculação de receitas, precatórios, teto de gastos e regimes fiscais.

Descendo um degrau para as normas abaixo da Constituição, a situação também é preocupante e, ao mesmo tempo, paradoxal. Por um lado, em 2000, foi aprovada a LRF, que já foi alterada simplesmente nove vezes por leis posteriores. Por outro, o Congresso está atrasado 35 anos na aprovação justamente das novas normas gerais do Direito Financeiro. É consenso que a atual Lei 4.320, de 1964, está desatualizada e dificultando a efetividade do processo orçamentário.

Portanto, o duplo desafio do Parlamento está na urgência de aprovação das novas normas gerais de Direito Financeiro e na necessidade de se pensar na consolidação de todas essas regras complementares em um único Código de Direito Financeiro Nacional, à luz do que estatui a Lei Complementar 95/1998, que trata das diretrizes para a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis federais no país. Não será uma tarefa simples. Mas não custa lembrar que a consolidação não adentra ao mérito das leis, mas sim à sua forma, sem modificação do alcance nem interrupção da sua força normativa.

O Direito Financeiro ganha relevância a cada dia, pois cuida de questões que se refletem diretamente na vida do cidadão. Recentemente, passou a ser disciplina obrigatória nos cursos jurídicos e exigido na prova da OAB. Mas é hora de pensar na simplificação e racionalização de seus textos. Já se disse que a palavra tem poder. Então, à clareza, à objetividade, à segurança jurídica, à efetividade. A República agradece.

PS: A propósito, há um movimento mundial pela “Linguagem Simples” (“Plain Language”). No Brasil, tramita na Câmara o PL 6.256/2019, que estabelece a Política Nacional de Linguagem Simples na administração pública (saiba mais em: bit.ly/42zYoRq).

Valdecir Pascoal – Conselheiro do TCE/PE