Pensar o futuro dos Tribunais de Contas exige uma profunda reflexão sobre o atual contexto de múltiplas crises. O mundo e o Brasil não “estão” para amadores. A complexidade domina todas as áreas: o Estado, a Democracia, as Instituições, os Governos, os Controles, o Meio Ambiente, a Geopolítica e as Relações Humanas.
Desafios históricos, como a desigualdade social e as crises econômicas cíclicas, já seriam suficientes, mas há dez anos as chamadas “Jornadas de Junho” inauguraram um novo patamar. Governar e controlar passaram a ser tarefas bem mais difíceis. Nesse mosaico de complexidades, vale lembrar: (a) o surgimento de um novo tipo de clamor popular por ética e eficiência na gestão e na política, só que, desta vez, mais retumbante, difuso e com pitadas de anarquia e violência (Coletivos, Black-Blocs); (b) o combate à corrupção que, fortalecido por novas leis e pelo espetáculo midiático, seria realizado, paradoxalmente, à margem do ético processo legal, como mais tarde se revelou, provocando uma onda anticontrole; (c) a eclosão de um extremismo ideológico e autoritário, que seria potencializado pelos algoritmos binários e enviesados das mídias sociais e suas fake news; e (d) os ataques e a resiliência das instituições encarregadas de proteger a Democracia e o Estado de Direito (“Setes de Setembro” e “Oito de Janeiro”).
No âmbito específico dos Tribunais de Contas destaque para o paradoxo entre o gestor, que alega “apagão da caneta” por medo, segundo ele, da mão insensível desses órgãos, e uma parcela da sociedade que acredita serem essas instituições excessivamente dóceis. É, portanto, nesse contexto de “Policrises” (Edgar Morin) e da “Sociedade da Desconfiança” (Pierre Rosanvallon), somado aos desafios da Era Digital, que os Tribunais de Contas assumem um papel singular e estratégico.
No âmbito do controle tradicional de conformidade, que avalia a regularidade formal da execução orçamentária, o maior desafio é melhorar o devido processo legal de controle externo, primando, entre outros atributos, pela imparcialidade do julgamento.
Para tanto, é essencial garantir que a necessária independência funcional do seu corpo fiscalizador (Auditoria) esteja no mesmo nível de equidade (“paridade de armas”) em relação aos Gestores, levando em conta, ademais, suas realidades e os obstáculos que enfrentam. Uma atuação preventiva (cautelar), sem o risco de usurpar a gestão, deve ser priorizada por ser mais efetiva, mas também é dever responsabilizar aqueles que se desviaram seriamente das balizas legais (law enforcement). Procedendo dessa maneira, os Tribunais de Contas atendem ao clamor por ética, sem o risco de serem acusados de inação ou de ativismo punitivista.
Existe, noutra seara, o anseio por uma maior eficiência das políticas públicas. Os Tribunais de Contas também têm tudo a ver com isso. A aplicação dos recursos públicos deve ser não apenas regular, mas, também, levar a resultados efetivos. A política pública existe para melhorar a vida das pessoas. Cada centavo aplicado deve ter como objetivo promover o bem comum, sem discriminações, erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades, enfim, garantir desenvolvimento e bem-estar social. Aqui entra o chamado controle operacional da gestão pelos Tribunais de Contas, cujo propósito é avaliar a efetividade dessas ações e o desempenho da Administração. As políticas públicas em Educação, Direitos Humanos, Saúde, Segurança, Infraestrutura, Meio Ambiente, por exemplo, devem ser avaliadas pelos Tribunais de Contas, que precisam alçar essa competência constitucional ao seu devido protagonismo. Agindo assim, contribuem para a máxima efetividade dos direitos fundamentais e melhoram a qualidade da democracia, à medida em que o cidadão se sente “pertencido”, sócio do progresso, e passa a confiar mais no Estado e em suas Instituições.
Mas eis que surge um novo campo de atuação para esse Tribunal de Contas do futuro, nas frentes de controle de conformidade e operacional: a criação de um processo a partir da instalação de mesas de mediação e conciliação, com o objetivo de promover consensos e a resolução de conflitos em temas complexos e estruturais. Esse aprimoramento do diálogo controle-gestão (podendo envolver agentes privados), que remonta ao tradicional “Tribunal Educador” e passa pela instituição, há algum tempo, dos chamados Termos de Ajuste de Gestão (TAGs), está em sintonia com o avanço do consensualismo e do mencionado contexto de policrises e complexidades. O TCU e outros Tribunais do país (a exemplo do TCE-PE, TCE-MT e TCM-SP), seguindo diretriz da Atricon (Associação dos seus membros), já regulamentaram este instituto, o qual, se bem utilizado, deve desatar “nós górdios” e trazer bons resultados.
Esse Tribunal de futuro, já presente em muitos aspectos, não se consolidará sem o bom uso das inovações tecnológicas, especialmente as relacionadas ao processamento de dados (Big Data) e à Inteligência Artificial (IA), nem de uma efetiva política de comunicação social.
PS: Para saber mais sobre o futuro do Controle, consulte as diretrizes da INTOSAI.
Valdecir Pascoal
Conselheiro do TCE-PE